Sensação
primária com as coisas
É
realmente extraordinário nos pegarmos defronte a vida, já com os anos passados
na algibeira. Há uma sensação de incômodo, como se um objeto esquecido
determinasse para todo o sempre sua volta ao mesmo lugar. O incômodo de ter que
voltar. Mas não, o tempo passa, não circula e não há como se voltar ao mesmo
lugar a não ser que remexas em teu passado e coloque-o de cabeça para baixo, a fim
de sacodir as últimas migalhas que restam. Ainda assim, insuficiente, a nossa
memória, quando se trata de retornos. Quando se tem 30 anos, a cabeça precisa
decidir, se eres o que determinaste a ti ou se és o que o mundo determina. E
contraditoriamente, percebemos que sim, o mundo determina muitas coisas. Porque
não há eu sem o mundo, ainda mais quando este mundo impregna-se em ti e quando
assistes a ele renascer todos os dias, pronto para a batalha final ou só e
apenas para mais uma batalha.
Há
quem pense que estou preocupada com o desfalecer da pele, com a aparência
perdida ou com o tempo que ainda me resta. Mas não, preocupa-me mesmo a
sensação primária das coisas. Aquela que aparece em Pessoa, “sei ter o pasmo
essencial que tem uma criança nascer”, que nos põe a reparar demais nas coisas
do mundo, a sofrer com elas, a nascer diariamente. Ainda assim, com 30 anos,
tenho o estranho hábito de me conectar com o pasmo essencial, a sensação
primária das coisas. Ela ainda me faz situar-me abaixo do conforto da realidade,
me lembrando em tempo real que ainda sou eu a existir, com minhas sensações e minha
espontaneidade.
Aos
30 anos posso olhar, através de outra perspectiva, o pasmo essencial de cada
dia...nele me reconheço sóbria, falante e sem parâmetro e mesmo assim lembro de
quem sou e em um momento tudo passa a fazer sentido. Aos 30 anos posso dizer
que muitas coisas passam a fazer sentido. Aquele sentido ausente, determinado
por mim e pela minha realidade de outrora ainda permanece, mas posso senti-lo e
pegá-lo com minhas próprias mãos, apalpá-lo e até rir com ele...
Então,
o que se apresenta aqui é - como sensação primária com as coisas - aquilo que talvez
perdemos com o passar dos anos mas que se não perdido desloca-se a uma imperceptível
velocidade dentro do nosso ser, visto a quantidade de anos que passamos
aprimorando-a ou tentando nos livrar dele.
Não
me interessa a análise persuasiva, o jeito de pensar dos homens lógicos. O que
me interessa aos 30 anos é possibilidade de ainda tomar a palavra e a liberdade
que vem de encontro ao exato do momento do sentir/existir.