segunda-feira, 31 de março de 2014

Aqui estou eu


Aqui estou eu,
Faço poesia em forma de pedra
E pedra sou
Atada e contida,
Um invólucro sem alma
Um chão de terra batida.

Aqui estou eu,
Faço poesia em forma de água
Água eu sou
Deflagrada e extensiva
Um caminhar sem pés
Um rio a banhar margens sem fim.

Aqui estou eu,
Faço poesia em forma de árvore
Árvore eu sou
Vertiginosa e ondulante
Um corpo sem movimento
Espalhando fronteiras ao redor.

Aqui estou eu,
Faço poesia em forma de nada
Nada eu sou
Ventre, vácuo e vazio
Um plano sem horizonte
Um mapa de territórios sem vida.

Aqui estou eu,
Faço poesia em forma da forma
Forma eu sou
Delineada, sem ornamentos
Forma pura, acabada.
Um encanto sem sentimento.

Aqui estou eu,
Faço poesia em forma de conteúdo
E é tudo.
Pedra, água, árvore e nada.
Forma enquadrada num verso.
Expressão inacabada.

quarta-feira, 19 de março de 2014

CATEDRAL

            Queria me poupar de escrever, para não ter que entrar em contato novamente com a dor. Ao caminhar sobre o espaço contido de vida, visualizava externamente o sopro de movimento que me restava. O dia estava chuvoso, desejava com prazer que continuasse assim, para que refletisse todo e qualquer resquício da minha alma afunilada em melancolia. Uma rua apenas, digna de cartão postal das bancas do meu turismo interno. Nada tinha de bela, a não ser a vida contida, a ladeira apontando para algum lugar misterioso de fé, lotado de pormenores históricos. Tomei o último gole enquanto olhava pro asfalto grotesco; nada mais valia a pena espreitar naquele momento em que a alma se despregava do corpo.
            Subi contida, pernas dolorosas, uma despedida realizada. Caminhava sozinha, embora acompanhada de pensamentos sórdidos. Respirava um caminho qualquer, como qualquer outro vivente, que passara pelos mesmos ladrilhos por centenas de anos. Há sempre uma novidade pronta a ser descoberta por um passo único. Talvez não fosse este meu caso. Nada descobria, revivia na memória caminhos parecidos, como aquele que calharia numa estrondosa estátua desapegada de vida. Degraus imensos (não eram tão imensos assim) se mostravam a minha frente. Subi pela diagonal, assim como fazem crianças descobrindo caminhos tortos. Deus não escreve por linhas tortas, permanece calado enquanto subimos seus caminhos sinuosos. Pensamentos divinos: nada mais apropriado para um caminhar em direção a casa monstruosa. Toda catedral tem algo de monstruoso.
            Atravessei uma rua morta, morta como estava, e nada mais me animou tanto quanto a porta entreaberta. É engraçado como as portas das catedrais nunca se abrem a sua frente, temos sempre que desviar nossa linha reta de certezas para os lados escuros de portas laterais. A porta da sua frente sempre está fechada. Assim como o céu neste dia em que não me encontro. Desvirtuei meus pensamentos a procura de imagens que pudessem estabelecer no meu ser outros parâmetros. Santos, anjos... estava a procura de um céu atormentado, assim como são todos aqueles céus construídos pelos homens. Não encontrava, a não ser imagens esculpidas com uma madeira morta, da qual mal sabia diagnosticar o que estava sendo representado. A forma reinava soberana. Meu conteúdo se esvaecia, na medida em que caminhava pelos assentos de madeira.
            Fechei os olhos para que pudesse escolher o melhor lugar, que ironia, não existe melhor lugar onde tudo é céu atormentado. Apropriei-me não do assento, mas sim da parede que em minha frente encontrava, onde observava muda o cântico desértico da abóboda ao lado. Um canto enferrujado, comido pelas traças do tempo. Fechei os olhos novamente, sentia-me abraçada por um sinal de mal-querer da vida. Ela me dizia, que aquele sim era o momento para abrir-me ao grande vale das lágrimas. Tudo fica biblicamente mais dramático quanto se está na grande casa tormentosa de Deus, este ser que se cala diante os caminhos sinuosos.



 Porto Alegre, 19 de março de 2014.