sábado, 5 de novembro de 2016

O fim das palavras
           
            Hoje em dia, a inspiração é uma coisa que passa. Não se pode enfrentá-la, assim como a vida, ela é um sopro rasteiro que se passa por despercebida, como uma gota de chuva na vastidão do mar. Temos doado tanto tempo à escrita corrida, as palavras mal ditas e a vida insegura, que já não basta dizer, escrever ou viver, é preciso ainda gastar-se com aquilo que não se tem: não se tem escrita, nem palavras e nem vida, é tudo um vazio infinito, preenchido por qualquer coisa de espaço...
            Às vezes num momento, tento alcançar a verdadeira lembrança do que éramos em tempos de verdade nua e crua; em tempos que os rostos não escondiam a face tortuosa e divina do tempo, ou do sentimento, ou da melancolia.
            Trato de respirar e tentar pegar o fio da meada dos acontecimentos, por mais que eles me escapem à memória e eu me perca nas palavras não ditas. Há qualquer coisa de estranho no ar, mas um estranho abominável, que tampa os buracos e que suporta pressões; buracos e pressões antes eram livres e podiam flutuar por aí...
            Não há nada de revivência nas minhas palavras. Há apenas a necessidade de se contrapor o justo mundo dos homens com o injusto mundo dos homens que passam e não percebem. Não percebem que lhes faltam palavras, lhes faltam motivos, lhes faltam ar e memória.
            Ultimamente, tem sido difícil recorrer à descrição, pois a mente trabalha mais rápido que os olhos. Tenho constantes espasmos e desejos pelas descrições, pois a mim elas sempre me afetaram de modo pungente, se mostrando como uma dor que desatina sem doer. Dói olhar as coisas, o mundo, as paisagens; dói ouvir, ser ouvido, dói estar presente sem estar, não estar presente estando...mas mesmo assim, anda difícil...Anda difícil o estado inanimado das coisas...anda difícil estar imobilizado e ser jogado contra a corja fria sem consentimento. Anda difícil acreditar que a qualquer momento algo pode ser mais leve e que eu consiga finalmente, em nós, capturar aquela impressão dos olhos, reviver o mundo das palavras, ou atingir qualquer coisa que não seja o espaço vazio.

            Há vida nas tentativas, nas palavras e no acerto certeiro no vazio, mesmo que não doa a ninguém.